Foto em zoom de mesa de totó (pebolim) com foco nos bonecos de metal pintados e representando jogadores de futebol, 3 por linha presos uma barra de metal. A imagem busca representar a gestão desumanizada em contextos de alta pressão.

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É possível liderar com humanidade em um cenário de instabilidade?

No dia 9/8/2023, tive o prazer de ser entrevistado por Emiliana Pomarico, responsável pela curadoria dos cursos da Escola Aberje de Comunicação, e conversamos sobre liderança e segurança psicológica em cenários de instabilidade econômica e pressão por resultados financeiros.

Abordamos também algumas temáticas que serão contempladas nos cursos livres em “Segurança Psicológica nas equipes” e “Cuidado e Saúde Mental nas empresas“, que vou conduzir na Aberje em outubro de 2023.

Emiliana é doutora e mestre em Relações Públicas pela ECA-USP e tecnóloga em audiovisual pela Universidade Paulista. Além disso, ela participa do Grupo de Estudos de Novas Narrativas e já palestrou em congressos nacionais e internacionais, nos Estados Unidos, Eslovênia e Portugal.

 

EP: Como falar de segurança psicológica considerando que ainda estamos diante de culturas muito hierarquizadas nos ambientes de trabalho?

EE: Culturas altamente hierarquizadas nos ambientes de trabalho são consequência de hierarquias sociais (e de saberes) fortemente estruturadas na História e cultura brasileira.

Para desconstruir culturas altamente hierarquizadas, é preciso quebrar crenças profundas sobre existirem profissionais que “servem para pensar” e outros que “servem para executar”. Isso se faz com sensibilização e valorização da diversidade.

Não é à toa que acolher a diversidade é um dos pilares da Segurança Psicológica em Times (SPT). Segurança Psicológica e iniciativas de Diversidade, Equidade, Inclusão e Pertencimento (DEIB) partem da mesma compreensão que empresas e times atingem melhores resultados quando dão espaço para vozes diferentes e dissidentes se expressarem e participarem de processos decisórios.

Não estou recomendando anarquia ou holacracia: um mínimo de estruturas hierárquicas é salutar para a maioria das organizações e há também necessidade de diferentes níveis de acesso à informação em muitas delas, logo nem todo mundo vai participar de TODAS as decisões.

Contudo, a hierarquia prejudica os resultados do negócio quando ela pressupõe incompetência das pessoas para autogerirem suas entregas e participarem dos processos decisórios que afetam diretamente seu trabalho ou as relações na equipe. O enfoque da SPT é trabalhar essa horizontalidade dentro dos times, não a aplicar em todos os níveis da organização.

 

EP: Como quebrar o ciclo de relativização da segurança psicológica em um cenário econômico instável, em que os resultados financeiros não são sempre atingidos?

EE: Também gostaria de saber!

A relativização da segurança psicológica em um cenário econômico instável é um comportamento 100% irracional e pouco inteligente. É precisamente neste tipo de cenário em que as empresas precisam “entregar mais com menos recursos” que a segurança psicológica se torna ainda mais imprescindível.

Quando não há segurança psicológica e as pessoas são ainda mais pressionadas pela empresa, o resultado é bastante previsível: elas adoecem (e precisam ser afastadas) ou fazem o check-out. É por essa razão que lideramos os rankings de burnout e a Gallup estima que, no mundo, 80% das pessoas estão desengajadas com o trabalho.

Em ambas as situações, esses times sem Segurança Psicológica vão afundar em um ciclo vicioso de:

  1. menos pessoas contribuindo
  2. menor atenção a detalhes, mais retrabalho e piores resultados e
  3. mais estresse pessoal e tensões no time, que retroalimentam a primeira etapa do ciclo.

 

EP: Como pensar e agir humanização considerando as pressões por resultados e metas no dia a dia?

EE: Há uma falsa dicotomia entre humanização (ou Segurança Psicológica) e resultados. A humanização (ou Segurança Psicológica) é o meio para alcançar resultados e metas ambiciosos e saudáveis.

Se pessoas adoecem por causa de metas, então são elas que precisam ser revistas, não as práticas de gestão e liderança.

Ainda assim, mesmo quando a pressão por resultados é saudável, na sociedade pós-moderna e no atual estado do capitalismo, todo mundo está vulnerável ao estresse e ansiedade.

A primeira competência a desenvolver é a consciência do seu próprio nível de estresse e a autogestão da energia pessoal. Se líderes não desenvolvem hábitos de higiene pessoal e mecanismos para recarregarem suas energias ou se o contexto de trabalho é tão estressante que estão constantemente em modo reativo de “fuga, luta ou congela”, é óbvio que não poderão oferecer ao time o que não têm disponível no momento: flexibilidade, empatia, compaixão, calma.

Trata-se da velha recomendação das companhias aéreas: você precisa colocar sua máscara de oxigênio antes de ajudar as outras pessoas.

Lideranças maduras e mais humanizadas sabem quando não estão bem e precisam se abster de agir. Elas constroem relações que as permitem confiar que a equipe saberá ser autônoma e tomar boas decisões em sua ausência. Melhor ainda é quando aprendem a pedir ajuda, que é outro pilar da SPT.

 

EP: Como lidar quando a própria liderança apresenta comportamentos não humanizados no dia a dia? Como as empresas podem trabalhar melhor isso?

EE: Logo de cara, eu penso em dois cenários possíveis:

  • Se há uma ou outra pessoa em posição de gestão agindo de forma desumana, ou seja, se é um caso isolado:

A empresa deveria conversar com a pessoa e com o time, entender o que está se passando no trabalho e em suas vidas pessoais, verificar se há alinhamento de valores organizacionais e pessoais da pessoa gerindo o time e oferecer ajuda. Essa ajuda muitas vezes ocorre no formato de mentoria individual, com objetivos específicos de mudança e realinhamento comportamental perceptível em um tempo pré-determinado.

Pode parecer contraintuitivo oferecer ajuda para alguém que está fazendo outras pessoas sofrerem, porém é precisamente este tipo de empatia radical, que compreende que as pessoas não são só suas ações mais recentes e podem também estar sofrendo, que permite romper o ciclo de punitivismo que aprisiona empresas em ambientes de aversão ao erro e medo.

  • Se há muitas pessoas em posição de gestão agindo de maneira desumana:

A empresa deve se perguntar quais incentivos explícitos e implícitos estruturou em seus processos internos para que esse comportamento seja encorajado e reproduzido.

Usualmente, isso ocorre como consequência de um Comitê Executivo disfuncional e com baixa Segurança Psicológica e exige um trabalho de mentoria em grupo, com enfoque no restabelecimento de relações saudáveis e seguras dentro do próprio Comitê.

 

Infelizmente, das duas alternativas, a última é a mais comum.

Como eu circulo frequentemente em empresas bem variadas, consigo identificar ambientes de trabalho tóxicos muito rapidamente, onde a gestão desumana se tornou um problema sistêmico e um modo de trabalho automatizado.

 

EP: O que as pessoas colaboradoras podem fazer nessas situações?

EE: A beleza da Segurança Psicológica em Times é que, apesar de a pessoa em posição de gestão ter grande influência na dinâmica do time, as relações na equipe são um acordo estabelecido por todo mundo. Ninguém é totalmente inocente, vítima e sem defesas em relação ao grau de Segurança Psicológica, inclusão e pertencimento no time.

Em muitos ambientes onde há uma gestão tóxica, as outras pessoas da equipe conseguem estabelecer relações de segurança, suporte e apreciação mútua, compensando, pelo menos em parte, os efeitos nocivos da má gestão. Pessoalmente, considero essa consciência libertadora, porque retira as pessoas de uma posição de passividade diante das relações que elas mesmas constroem com colegas no dia a dia do trabalho.

Obviamente, em organizações sadias, uma gestão desumana ou tóxica não deve perdurar, então pessoas colaboradoras podem escalar práticas abusivas e recorrer aos canais de denúncia, quando há confiança neles.

Outra solução é estabelecer com profissionalismo e assertividade fronteiras claras entre trabalho e vida pessoal e também diante de comportamento abusivo. Essa é precisamente a principal prerrogativa do movimento da “demissão silenciosa”, que ganhou força no último ano.

Infelizmente, em casos mais extremos em que a pessoa não encontra o apoio devido da empresa, ela precisará obter afastamento médico ou pedir demissão (com ou sem indenização trabalhista na sequência). Por mais que haja realidades socioeconômicas muito distintas em nosso país que dificultem bastante essa tomada de decisão, carreira nenhuma vale a sua saúde. E quando a saúde cobra, o preço pode ser bem alto.

 

EP: Como preparar a liderança para ter conversas abertas e criar ambientes acolhedores no dia a dia?

EE: Inscrevendo-as nos cursos da Aberje de “Segurança Psicológica nas Equipes” e “Cuidado e Saúde Mental nas empresas” que vou conduzir em outubro de 2023.

Em ambos os cursos, vamos desfazer concepções falsas sobre Segurança Psicológica e Saúde Mental e abordar em detalhes quais comportamentos e atitudes contribuem para um ambiente acolhedor, saudável e respeitoso, em que as pessoas se sintam satisfeitas, engajadas e livres para se expressarem sem medo de retaliação. Vamos também trabalhar com cases e ferramentas práticas para desenvolver essas competências na liderança de times.

 

EP: Do que líderes precisam se conscientizar para gerir o time de maneira humanizada?

EE: Pessoalmente, acho o conceito de “liderança humanizada” um pouco absurdo. Ele pressupõe que seja possível liderar (ou seja, desenvolver pessoas) de maneira desumana.

É possível gerir times desumanamente (e de modo não sustentável), mas nunca liderar, porque liderar exige uma relação de confiança em que a pessoa liderada reconheça quem faz a gestão como líder.

Feita essa ressalva, diria que líderes precisam se conscientizar de 3 realidades para liderar de maneira ainda mais humanizada:

  • Consciência da diversidade, de estruturas de exclusão e poder e de seus privilégios.

Entender que o que vale para si e o que seu corpo ocupa e pode fazer na sociedade brasileira não necessariamente é o mesmo que os corpos de pessoas na sua equipe ocupam e podem fazer nessa mesma sociedade. Essa diferença não é fruto da falta de mérito ou vontade das pessoas, mas de estruturas sociais cruéis e excludentes.

  • Consciência de que lidera seres humanos, não máquinas.

Isso exige que líderes tenham sensibilidade e atenção a nuances, mudanças de humor e questões pessoais que podem afetar as entregas e aprendam a acolhê-las. Pessoas cometem erros e seus desempenho nunca são uniformes, porém pessoas engajadas e respeitadas sabem compensar uma queda temporária nas entregas. Saber reagir construtivamente a erros é um dos pilares fundamentais da Segurança Psicológica.

  • Consciência da impermanência.

Nenhuma pessoa ou contexto é estático. Tudo está em constante movimento, logo comportamentos, hábitos e competências podem mudar e ser desenvolvidos. Isso requer um esforço consciente de líderes de não colocar as pessoas do time em caixas, inibindo ou impedindo o crescimento.

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